O glorioso Pontífice da Sagrada Eucaristia, do Catecismo,
do Direito canônico e do Canto gregoriano, que combateu destemidamente a heresia modernista
Por ocasião dos 100 anos do falecimento de São Pio X, Catolicismo dedica ao imortal Pontífice a matéria principal desta edição, reproduzindo a seu respeito textos da lavra de Plinio Corrêa de Oliveira, inspirador e durante várias décadas principal colaborador de nossa revista.
Prestamos assim um preito de gratidão ao Sumo Pontífice que agiu em tudo conforme seu admirável lema Restaurar todas as coisas em Cristo, e cujo centenário deveria ser recordado pelos católicos do mundo inteiro.
Falecido em 20 de agosto de 1914, o 259º sucessor de São Pedro foi solenemente elevado à glória dos altares pelo Papa Pio XII em 1954.
São Pio X exerceu seu pontificado de 1903 a 1914 — até o ano, portanto, da Primeira Guerra Mundial —, numa época fortemente contagiada pelo liberalismo anticlerical e, por isso mesmo, de muitos combates desse Vigário de Cristo contra os inimigos externos e internos da Igreja.
Dentre estes últimos destaca-se o movimento modernista, precursor do progressismo católico de nossos dias, que visava adaptar a Igreja ao espírito e aos erros do mundo moderno, infectar com tais desvios os ambientes sagrados, e levar os católicos a acomodarem-se a esses erros.
Mesmo em meio a tão árduas lutas, São Pio X fortaleceu extraordinariamente a Santa Igreja e incrementou de modo vigoroso a piedade católica.
Quando assistimos perplexos às calamidades de nossa época, tão semelhantes às enfrentadas pelo insigne Pontífice, voltemos para ele nossos olhares, pois além de ser especial intercessor junto a Deus, constitui para nós o melhor exemplo e incentivo para resistir sempre no bom combate dos presentes dias. É o que passaremos a expor por meio dos textos que a seguir transcrevemos.
A Direção de Catolicismo
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Significação essencial de um grande pontificado
A vida de São Pio X foi uma preparação providencial para assumir a Cátedra de São Pedro. Vigário de Riese, cônego em Treviso, bispo de Mântua, Patriarca de Veneza, na Itália, conheceu ele o ministério das almas nos seus vários níveis e aspectos. Assim, adquiriu uma visão de conjunto sumamente adequada para quem exerceria a direção suprema de todos os Pastores e de todos os rebanhos.
Plinio Corrêa de Oliveira
Catolicismo, nº 47 — novembro de 1954
De há muito se faz sentir no público brasileiro a necessidade de uma apresentação da figura de São Pio X em todos os seus aspectos, e numa perspectiva de conjunto que ponha em evidência a mútua conexão, a devida hierarquia de natureza e fins, e a harmoniosa unidade que entre esses aspectos existe.
Até certo ponto, na retina mental do povo, há “vários” Pio X. Alguns vêm nele tão somente o taumaturgo com as cãs nimbadas por uma auréola de santidade, a distribuir bênçãos milagrosas nas nobres galerias do Vaticano. Outros, ancião cheio de doçura, absorto inteiramente no aprimoramento da instrução catequética e da piedade eucarística das crianças. Os artistas consideram nele exclusivamente o restaurador da música sacra. Certas pessoas piedosas tanto se impressionam com sua vida interior que o imaginam como uma alma unicamente contemplativa, tanto mais que, fora da Itália, seu apostolado pessoal intenso perdeu-se algum tanto na memória das massas. As pessoas mais particularmente chamadas para a luta tendem por vezes a não considerar em Pio X senão o Anjo de espada de fogo, que infligiu ao modernismo a maior derrota que este até hoje sofreu, e opôs um dique vitorioso à arremetida anticlerical na França.
Ora, a maior glória de São Pio X não está em ter sido o Anjo da Guarda da humanidade de seu tempo ou o taumaturgo admirável do Vaticano, ou o Papa da Eucaristia, etc., mas em ter sido tudo isto a um tempo, de modo eminente, realizando em sua pessoa e em sua obra uma variedade de aspectos desconcertante por sua riqueza e contudo sumamente harmoniosa. A consideração detida deste ponto dá-nos o conhecimento exato de quem foi Pio X, e abre vistas para uma noção equilibrada e altamente proveitosa do que seja a santidade, e a própria missão da Igreja.
As grandes linhas biográficas
O futuro Pio X nasceu em de junho de 1835, de pais muito pobres, João Batista Sarto e Margarida Sanson, num lugarejo insignificante denominado Riese, antiga Marca de Treviso (Itália). No dia imediato, foi batizado com o nome de José. Crismado aos 10 anos, foi admitido à Sagrada Comunhão aos 12. Em 1850, entrou no seminário de Pádua, onde foi recebendo sucessivamente as Ordens menores e maiores até 1858, ano em que recebeu o Presbiterato. Nomeado logo depois capelão de Tombolo e em 1867 pároco de Salzano, foi promovido a cônego de Treviso em 1875, acumulando estas funções com as de chanceler da diocese e diretor espiritual do seminário. Em 1884, aos 49 anos pois, foi eleito bispo de Mântua, e nessa sede recebeu em 1893 o cardinalato como prêmio de seus altos méritos. No mesmo ano, viu-se elevado a Patriarca de Veneza. Em 1903, o Conclave reunido para a escolha do sucessor de Leão XIII o elegeu para o Sumo Pontificado. José Sarto tomou então o nome de Pio X. Tinha 68 anos e governou a Igreja até sua morte, ocorrida aos 79 anos, em 20 de agosto de 1914.
Como se vê, foi uma carreira brilhante, que levou José Sarto, por todos os degraus intermediários, da pobre vivenda de Riese aos esplendores do Vaticano.
Esta carreira lhe deu ocasião de exercer o múnus sacerdotal nas mais variadas situações, vendo os problemas de apostolado em todas as perspectivas, tomando contato com eles em todos os níveis da cura de almas, desde coadjutor de aldeia a Pontífice Romano, e passando por funções delicadas, não só como a de chanceler de bispado, mas ainda como a de diretor espiritual de seminário, delicada dentre as mais delicadas.
É, como se vê, uma incomparável preparação para o Papado.
O sentido profundo de uma vida
Confrontando-se na obra do Padre Dal Gal, as atividades do santo em cada uma destas etapas, nota-
se que são substancialmente as mesmas da etapa anterior, transpostas apenas para campo mais vasto. Dir-se-ia uma mesma melodia executada com força e harmonia crescentes, até cobrir com seus acordes toda a superfície da Terra. As notas desta melodia espiritual — isto é, os mais altos conceitos sobre a Igreja, a ação da Providência no governo das almas e na direção dos acontecimentos terrenos, a santidade sacerdotal, a difusão do bem e a repressão do mal como aspectos do grande prélio da Igreja militante — em essência não são muitas. Seu valor vem da incomparável beleza de cada uma, da harmonia que reina entre todas. A verdadeira música não se faz com muitos sons de mero efeito, mas com o desenvolvimento de melodias simples, harmônicas, belas.
Poderíamos talvez enunciar assim as linhas mestras que nos foi dado notar na obra fecunda do grande Papa:
— Por sua própria razão de ser, o sacerdote ou o bispo, quer na sua vida pessoal, quer no exercício do seu ministério, deve estar intimamente unido a Nosso Senhor Jesus Cristo e ocupado em Lhe fazer a vontade irrestritamente, incondicionalmente, sem pusilanimidade nem meios termos. Portanto, oração, meditação, mortificação, antes de tudo. Mutatis mutandis, o mesmo se deve dizer dos religiosos, e dos apóstolos que nas fileiras do laicato auxiliam a Sagrada Hierarquia. De onde deve merecer lugar primordial tudo quanto se refere ao afervoramento da piedade, quer entre os fiéis, quer entre religiosos e sacerdotes.
— A Sagrada Eucaristia e Nossa Senhora sendo respectivamente fonte e canal das graças necessárias para tal, é da mais alta importância incentivar e desenvolver a devoção que Lhes têm os fiéis. O culto público da Igreja, celebrado com gravidade e decoro é meio indispensável e muito eficaz para a santificação das almas. Convém pois interessar nele os fiéis, para o que é muito importante o incentivo da boa música sacra, e a eliminação das músicas profanas, teatrais, indecorosas, que infelizmente haviam invadido o santuário.
— A formação piedosa não pode deixar de se basear sobre uma instrução religiosa séria, embora
proporcionada ao grau de cultura de cada fiel. Todas as formas de alta instrução religiosa — estudos de filosofia escolástica, investigações históricas e bíblicas profundas, etc. — são de se aplaudir e desenvolver. Mas devem pressupor o conhecimento exato do catecismo, sem o que todo o edifício cultural católico carece de base. Ademais, sem o conhecimento do catecismo, todo o apostolado e toda a apologética são vãos. Como propagar uma verdade que não se conhece? E como atacar o erro, quando se ignora a verdade? De onde ampla, amplíssima divulgação catequética para crianças e também para adultos.
— Com a piedade, a instrução religiosa e a mortificação reinando em seus muros, com membros inteiramente dóceis ao Papa — docilidade que é a pedra de toque de toda formação verdadeira — as falanges católicas, trilhando sempre as vias da perfeição que são as vias da Providência, podem contar com o apoio de Deus. E por isto devem atirar-se animosamente — cada qual segundo sua vocação — às fainas do apostolado. Por entre borrascas, abismos e aparentes desastres talvez, Deus as conduzirá à vitória.
— Este apostolado há de ser inteligente e heroico. Inteligente, há de supor em seus planos um conhecimento minucioso da época e do lugar em que atua, um emprego refletido e ágil dos métodos de ação adequados às circunstâncias, grande envergadura e até certo arrojo no formar os desígnios, muita prudência nos meios, penetração religiosa profunda em todos os setores e classes da sociedade. Heroica, há de acarretar a renúncia a todas as vantagens pessoais, e implicará no destemor em face de todas as inimizades e de todos os riscos.
— A esmola é um dos graves deveres dos católicos.
— O zelo do apóstolo não pode estar alheio à esfera da política, para proteger os direitos da Igreja. Assim, sempre que haja questões de ordem religiosa ou moral a tratar na política, os católicos ali devem estar, unidos e disciplinados.
— Para que a atividade da Igreja seja livre de tropeços interiores, cumpre que suas leis, sabiamente proporcionadas às necessidades dos tempos, sejam conhecidas, amadas e obedecidas por todos.
— A ação pessoal do apóstolo sobre as pessoas com quem tem contato é do maior proveito. Em São Pio X sua eficácia atingiu frequentemente as raias do milagroso. Tal eficácia, aliás, não resulta de se velar a verdadeira doutrina, nem das concessões impossíveis, mas da atração da verdade, do bem e da graça.
— O combate ao erro e ao mal não compendia em si toda a atividade da Igreja, como a clínica e a cirurgia não são os únicos cuidados que devemos a nosso corpo. Melhor é evitar as doenças por uma vida metódica e sã. Mas quando a doença apesar de tudo se manifesta, cumpre enfrentá-la por todos os modos. Assim, melhor é prevenir o aparecimento do erro e do mal, pregando a verdade, aproximando as almas dos sacramentos, fazendo-as amar a virtude e a mortificação, do que reprimir os desatinos em que por nosso triste descuido possam cair. Mas se o erro e o mal se mostrarem persistentes é preciso agir contra eles. São Pio X deu todos os exemplos da admirável bondade e da energia com que neste combate se deve lutar.
É interessante analisar a continuidade da obra grandiosa de São Pio X em cada cargo que ocupou, à luz destes princípios em que se enfeixam — pelo menos de modo geral — os seus meios para a realização de seu lema admirável: Instaurare omnia in Christo (Restaurar todas as coisas em Cristo).
Importância que São Pio X deu ao catecismo
Este ponto merece no Brasil relevo especial, pois precisamos de catecismo em todos os graus. Muito tem sido feito, mas muito ainda há que fazer para o desenvolvimento catequético primário. Não menos importante talvez é o desenvolvimento do ensino da Religião no curso secundário. Mas isto não basta. Precisamos trabalhar por que se dissipe o triste preconceito de que o catecismo é apenas para crianças. Nenhum católico de nível cultural universitário pode sentir-se em dia com sua consciência, se não tiver uma formação catequética correspondente.
José Sarto foi o aluno mais vivo e esforçado do curso de catecismo que seguiu em sua Paróquia natal. Com a vivacidade que conservou até os últimos dias, seguia as explicações do pároco, ao qual dava respostas por vezes surpreendentes. “Darei uma maçã a quem me diga onde está Deus”, disse certa vez o zeloso sacerdote. E o pequeno José lhe respondeu ato contínuo: “Pois eu lhe darei duas maçãs se me disser onde Deus não está”. Nasceu nos bancos do catecismo seu ardente interesse pela doutrina sagrada, elemento essencial de toda vocação sacerdotal séria.
Concluídos seus estudos de seminário, seu espírito estava definitivamente aberto para a importância do ensino da Religião. Assim, como pároco de Salzano, lecionava pessoalmente o catecismo ao povo, convidando para ele os paroquianos, e explicando-lhes todos os males que decorrem da ignorância religiosa. “Conjuro-vos a que venhais ao catecismo”, dizia. E acrescentava: “antes faltar às Vésperas, do que faltar ao catecismo”.
Seu ensino era sério, fundo, meticuloso, mas muito interessante. Explicava a doutrina “com muita vitalidade e grande calor”. Inaugurou o método de dialogar o catecismo com um jovem sacerdote da Paróquia vizinha, o que atraia para suas aulas pessoas de toda a redondeza.
Como Cônego em Treviso, sobrecarregado de afazeres na chancelaria da cúria diocesana, e
responsável pela direção espiritual de mais de 200 seminaristas, ainda achava meio de ensinar catecismo aos alunos do colégio episcopal.
À testa da diocese de Mântua, uma de suas maiores preocupações foi o ensino do catecismo. Era tema frequente de suas exortações ao clero ou aos fiéis. Estendeu-se particularmente sobre o modo e ocasião de ministrar a doutrina católica em sua Pastoral de 1885, ordenando que em todas as Paróquias se instituísse a Escola da Doutrina Cristã, mandando outrossim que o pároco ensinasse o catecismo ao povo nos domingos e dias de preceito, e diariamente para as crianças na quaresma e advento. E, acompanhando estas judiciosas medidas de ação positiva com algumas severas penas, segundo seu sábio costume, proibia que os confessores dessem absolvição às pessoas que impedissem seus filhos, ou criados, de comparecer às aulas de instrução religiosa sem justa causa.
A fim de estimular os párocos neste apostolado, comparecia ora nesta, ora naquela Paróquia, inesperadamente, certificando-se sobre se a aula estava sendo dada, e assistindo-a para se inteirar da capacidade do sacerdote.
Não haviam transcorrido dois meses de sua trasladação para Veneza, e já o novo Patriarca dirigia a seus diocesanos uma Pastoral em que falava largamente do catecismo e exclamava: “Acontece com frequência que pessoas instruídas nas ciências profanas ignoram totalmente ou conhecem mal as verdades da Fé, e conhecem menos o catecismo do que as crianças mais simples. Pense-se no bem das almas, que se tem em mira. O povo está sedento de verdade. Dê-se-lhe o necessário para a salvação de sua alma, e então, comovido e emocionado, chorará seus erros e se aproximará dos sacramentos divinos”.
Reorganizou ele imediatamente as escolas de catecismo paroquiais, ordenou aos párocos uma explicação mais assídua e sistemática da doutrina católica, promoveu com todas as suas forças a formação de melhores catequistas, e introduziu o ensino da Religião nas escolas municipais. Como em Mântua, aparecia ora numa igreja ora noutra, para observar como se ministravam as lições.
Como Papa, São Pio X deu ao orbe católico um exemplo magnífico, ensinando durante oito anos, pessoalmente, o catecismo ao povo romano no pátio de São Dâmaso, onde até hoje se assinala o ponto em que falava. Pode-se imaginar quão eficiente foi o incentivo deste exemplo, para dar impulso aos esforços catequéticos no mundo inteiro. Mas São Pio X não se contentou com isto. Na Encíclica Acerbo Nimis, de 15 de abril de 1905, mostrou em palavras pungentes o estado de ignorância religiosa em que se encontravam tantos fiéis: “É difícil descrever quanto são densas as trevas que envolveram inúmeros homens que se supõem cristãos e nesta crença vivem tranquilos. Neles não há o menor pensamento para Deus. Os mistérios da Encarnação do Verbo de Deus e da Redenção do gênero humano realizada por Jesus Cristo são coisas desconhecidas para eles. Nada sabem sobre o Sacrifício da Missa, nem os sacramentos pelos quais se adquire e conserva a graça de Deus, e não avaliam quanta malícia existe no pecado mortal. Por isto não se esforçam por evitá-lo nem deplorá-lo, e só se inteiram de algo quando estão chegando ao fim de sua vida”.
Depois de mostrar que a instrução religiosa é meio indispensável para o pleno aproveitamento dos frutos do Batismo, dispõe medidas para o incremento do ensino religioso em todo o orbe católico. Estas medidas, fruto de uma longa experiência, são em sua substância as mesmas já postas em vigor em Mântua e Veneza. O Santo Pontífice determinou nesse documento que também nas Universidades se estabelecessem “Escolas de Religião destinadas a promover o ensino das verdades da Fé e a formação da vida cristã”. O efeito desta Encíclica foi mundial. A preparação de catequistas leigos para suprir as deficiências do clero se desenvolveu imensamente, os congressos catequéticos, os concursos, os prêmios se multiplicaram. Os estudos sobre metodologia catequética floresceram. Foi uma aurora em toda a Igreja.
O ensino do catecismo, São Pio X não o concebia como coisa inerte, fria, puramente informativa. Desejava ele que fosse feito de maneira a acender o amor pela nossa santa Fé, e o zelo pela Lei de Deus. O seu empenho neste particular melhor se compreende estudando o modo de pregar de São Pio X.
Fonte: Catolicismo, Agosto de 2014.