O ano de 2013 encerrou-se com os homens quase não se entendendo mais. O que nos trará 2014? O desvario final, ou a reorganização dos filhos da luz aos pés da Santíssima Virgem para “novos e cristãos atrevimentos”?
Luis Dufaur
Nos céus de Roma, emoldurados pelos símbolos do Papado, um helicóptero fazia o voo de despedida de Bento XVI. Este deixava o Vaticano para aguardar em Castel Gandolfo o instante em que deixaria de ser Papa. Ao soar as 20 horas no dia 28 de fevereiro, os guardas suíços fecharam os portões: o trono de Pedro estava vacante e começava a convocação do Conclave. Naquela noite, na Roma sem Papa, um raio caía sobre a cúpula da Basílica de São Pedro. Na casa de um amigo, o celular tocou e uma voz angustiada perguntou além do Atlântico: “O que é isto? É o fim do mundo?” Sem dúvida não era. Mas a renúncia evocou esse horizonte apocalíptico. E 2013 girou em torno disso.
Continuidade do “babelesco” 2012
No discurso de Natal 2012, Bento XVI havia condenado o “casamento” homossexual e denunciado que a teoria dos gêneros manipula a natureza e compromete a dignidade da família (“O Estado de S. Paulo”, 21-12-12). Porém, no início de fevereiro, o arcebispo Vincenzo Paglia, presidente do Pontifício Conselho da Família, defendeu a existência de direitos para os casais de fato. O cardeal foi apoiado por D. Rino Fisichella, presidente do Pontifício Conselho para a Nova Evangelização, criado recentemente por Bento XVI (“El País”, 5-2-13)
Simultaneamente, o Cardeal arcebispo de Colônia declarou “justificável” o uso da “pílula do dia seguinte” após uma violação. Seu porta-voz tentou apaziguar o alvoroço, dizendo haver se referido a pílulas que impedem a fecundação, sem efeitos abortivos (“La Croix”, 5-2-13). Mas cientistas e especialistas declararam que tais pílulas do dia seguinte não existem. A polêmica atravessou os oceanos e de todos os lados surgiram declarações conflituosas a respeito da posição do cardeal alemão. Por fim, nas vésperas do Conclave, a Conferência dos Bispos da Alemanha aprovou certo tipo de “pílula do dia seguinte” “para efeito preventivo, e não abortivo”(“O Globo”, 22-2-13). Em sentido oposto, o secretário geral da Conferência Episcopal Espanhola, D. Juan Antonio Martínez Camino, esclareceu aos fiéis escandalizados: “Não nos consta que haja uma pílula do dia seguinte sem efeito abortivo” (“Religión en Libertad”, 26-2-13). Dois episcopados entraram em colisão acerca de uma questão até então indiscutível.
“Como raio em céu sereno”
Em 11 de fevereiro, Bento XVI renunciou à Cátedra de Pedro. A renúncia, que se tornou efetiva no dia 28, foi “como um raio em céu sereno”, tendo sido recebida com “desconcerto” pelos cardeais, segundo o decano deles, D. Angelo Sodano. Muitos fiéis, na opinião do Prof. Roberto de Mattei, historiador do Concilio Vaticano II, ficaram “órfãos” em meio às tempestades que chacoalham a Igreja. Em 2010, capitaneados por Hans Küng, líder contestatário proibido de ensinar em nome da Igreja, 50 teólogos espanhóis haviam pedido essa renúncia (“Corrispondenza romana”, 12-2-13). O Direito Canônico admite a abdicação e houve Papas que renunciaram, porém nunca pelas razões então invocadas: “a fortaleza tanto da mente quanto do corpo [...] nos últimos meses se deteriorou em mim ao ponto de ter de reconhecer minha incapacidade de desempenhar adequadamente o ministério que me foi confiado” (“O Estado de S. Paulo”, 12-2-13).
A “Folha de S. Paulo” (12-2-13) lembrou que, segundo “L’Osservatore Romano”, Bento XVI era “um pastor cercado de lobos”. Para o diário paulista (13-2-13), a “renúncia evidencia clima de ‘guerra civil’ no Vaticano”, alimentada por “lutas fratricidas” e escândalos nunca esclarecidos. Segundo Massimo Introvigne, representante da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) para o Combate ao Racismo, Xenofobia e Discriminação, a renúncia foi um evento “apocalíptico”. Esse termo foi por ele usado no sentido de que “vivemos num tempo de extrema dificuldade para a Igreja e para a sociedade, no qual um processo multissecular de descristianização se revela como putrefação final, com uma virulência antirreligiosa, anticristã e anticatólica inaudita” (“La Nuova Bussola Quotidiana”, 11-2-13).
Fenômenos no céu
O “raio em céu sereno” da Sala do Consistório teve seu equivalente na esfera física. Na noite da renúncia, um raio atingiu a Basílica de São Pedro. Poucos dias depois, um meteoro explodiu nos céus da Rússia com a potência de 20 bombas atômicas. O fenômeno iluminou vasta região e feriu mais de mil pessoas em Chelyabinsk. Explosões de meteoritos tão violentas só acontecem a cada século (“O Estado de S. Paulo”, 16-2-13). Em março, outra bola de fogo cruzou o céu da costa oeste dos Estados Unidos (G1, 24-3-13). Em abril, mais uma explosão descomunal de um meteorito apavorou o centro da Espanha (“Periodista Digital”, 14-4-13). No mesmo mês, nove províncias argentinas viram de madrugada outro fenômeno meteórico comparável ao russo. A noite virou dia numa imensa superfície, a terra tremeu, muitos correram apavorados à rua. Em La Rioja (Argentina), o povo achou que era “um sinal divino” (“Clarin”, 22-4-13).
No início do ano, um temporal de violência inusitada se abateu sobre o Santuário de Fátima, Portugal. A fúria da natureza danificou todo o perímetro do Santuário, inclusive as Basílicas de Nossa Senhora do Rosário e da Santíssima Trindade (“Santuário de Fátima”, 19-1-13). O jornal “El Mundo”, de Madri, lembrou que nesses dias se comemoravam 75 anos da grande aurora boreal de 25 de janeiro de 1938, considerada como realização do aviso de Nossa Senhora: “Quando virdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao Santo Padre” (“El Mundo”, 23-1-13).
Francisco I
Bento XVI teria renunciado após ler um relatório de 300 páginas elaborado por três cardeais provectos. O sigiloso texto apresentaria a Cúria Romana infiltrada por redes de homossexualismo, pedofilia e desvio de dinheiro (“O Estado de S. Paulo”, 22-2-13). O Conclave reuniu-se de modo acelerado. E no dia 13 de março foi anunciado o novo Sumo Pontífice: o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio, SJ.“Foi uma surpresa geral. Os fiéis que lotavam a Praça São Pedro precisaram de alguns minutos para entender o nome do papa eleito, antes de aplaudi-lo” (“O Estado de S. Paulo”, 14-3-13). Ele apareceu na loggia de São Pedro sem usar alguns símbolos característicos do Papa nessa ocasião. Ele os teria recusado, segundo o vaticanista Luigi Accatoli, dizendo: “Acabou o carnaval” (“Il Corriere della Sera”, 15-3-13). A frase foi desmentida. Porém, quando Francisco I colocou um nariz de palhaço na Praça de São Pedro, foi recordada a frase alusiva ao “carnaval”. Antes da primeira bênção Urbi et Orbe, o novo Papa inclinou-se e pediu aos presentes orações para si, como que reconhecendo uma supremacia à comunidade dos fiéis.
Francisco I voltou ao hotel Santa Marta num ônibus junto com os cardeais, e sentou-se à mesa sem ocupar o lugar da presidência. Desde então, não usou o carro especial reservado ao Papa, recusou os apartamentos pontifícios no Palácio Apostólico e passou a residir na hospedaria eclesiástica Santa Marta, onde escolhe a esmo um lugar nas mesas de refeição, abre as portas para os visitantes, usa o elevador comum, e procede a outras simplificações muito aplaudidas pela mídia. Além de quase não se referir a si mesmo como Papa, adotou uma cruz peitoral de aço em vez de ouro, um anel do Pescador igualmente não de ouro, e um férula nova; deixou de usar o trono papal, a pequena capa chamada mozzetta e os sapatos vermelhos; adotou também um branco desbotado para sua batina, entre outras inovações simbólicas (“Il Corriere dela Sera”, 19-3-13). Muitos se lembraram então doPacto das Catacumbas, promovido por D. Hélder Câmara durante o Vaticano II, cujos signatários prometiam renunciar a toda honra eclesiástica em aras à igualdade e à pobreza. A adesão de novos bispos a esse pacto realiza-se em cerimônias na Catacumba de Domitila.
O Pe. João Batista Libânio SJ, adepto da Teologia da Libertação, saudou o novo Papa como expoente dessa corrente, apontando semelhanças entre ele e o bispo ultra progressista brasileiro D. Pedro Casaldáliga. Para Hans Kung, teólogo punido pela Santa Sé, “foi a melhor escolha possível”. Para o ex-frade Leonardo Boff,“Francisco é todo um programa de Igreja” (“O Estado de S. Paulo”, 15-3-13). O experiente líder comunista italiano Walter Veltroni ressaltou que “Francisco se afastou do trono cada vez que tomou a palavra” (“Il Corriere della Sera”, 18-3-13). Órgãos da mídia que assumem normalmente uma posição crítica em relação à Igreja noticiaram com satisfação os gestos do novo Pontífice, que “deverá imprimir um novo estilo, mais despojado, à frente da Igreja Católica” (“O Estado de S. Paulo”, 15-3-13).
Por sua parte, Bento XVI retirou-se para uma casa no território Vaticano. A esse propósito tomaram corpo incógnitas inusitadas: “uma Igreja com dois papas”, com os fiéis se dividindo em razão de preferências morais, litúrgicas ou doutrinárias? (“El País”, 28-2-13). O tratamento reservado a Bento XVI, inclusive noAnuário Pontifício, não desfez essa sombra de cissiparidade. Ele conservou o nome de Papa, com o acréscimo de “emérito”, continuando a ser tratado de “Sua Santidade”, usando símbolos como a batina e o solidéu brancos que os fiéis atribuem exclusivamente ao Sumo Pontífice. Francisco I sempre procurou se apresentar junto a ele como um igual.
Analogia entre curiosa previsão e alguns fatos
Mario Staderini, secretário de Radicali Italiani, pequeno partido anarquista e libertário, previu em 15 de fevereiro que o próximo Papa iria “libertar a Igreja Católica do poder temporal. Por isto espero um pontífice que se chame Francisco I. Como o poverello de Assis, que se libertou de todos seus haveres para ‘viver segundo o modelo do Evangelho’ antes de ‘viver segundo o modelo da Igreja de Roma’”. E acrescentou: “Renunciar ao poder temporal significa converter o imenso patrimônio imobiliário e financeiro vaticano no primeiro fundo pelo bem-estar universal que torne realidade o direito humano de viver sem miséria. Um fundo que talvez fosse confiado à ONU e que serviria de exemplo para o mundo todo” (www.radicali.it, 15-2-13). A analogia entre esta singular antevisão e os fatos suscitou comentários.
Reforma da Cúria e da Igreja
Na cerimônia da Sexta-Feira Santa, presidida por Francisco I, o Pe. Raniero Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia, comparou a Igreja a “certos prédios antigos” que “não correspondem às exigências atuais, mais ainda, são um obstáculo, e então se faz necessário ter a coragem de derrubá-los” (ACI, 29-3-13). Numerosas foram as censuras do novo Papa à Cúria Romana, a bispos e religiosos “mundanizados”. O Instituto para as Obras de Religião (IOR), tido como banco do Vaticano, foi alvo de especial “estrondo” jornalístico. No fim do ano, as perícias encomendadas nada haviam encontrado de relevante. A propósito, convém lembrar Voltaire: “Menti, menti, algo sempre ficará”.
Em 13 de março, Francisco I convocou oito cardeais para projetar uma reforma da Cúria Romana e aconselhá-lo no governo da Igreja. “Além da reestruturação da Cúria Romana, espera-se também que haja mudanças na renovação da doutrina e da disciplina eclesiásticas” (“O Estado de S. Paulo”, 23-6-13). Em maio, Francisco I disse à Caritas Internacional: “deveremos até vender as igrejas para dar de comer aos mais pobres” (“Vatican Insider”, 17-5-13). “Se o papa abre mão do Palácio Apostólico para morar na Casa Santa Marta, por que não se livra do fausto secular que a Igreja traz de antes da Idade Média?” perguntou “O Estado de S. Paulo” (23-6-13).
“Cedo ou tarde— escreveu Frei Betto — a Igreja terá de democratizar sua estrutura de poder. Torná-la mais colegiada. [...] Em suas cartas escritas durante o Vaticano II, e hoje publicadas, Dom Hélder diz ter sonhado que o Papa enlouqueceu, jogou sua tiara no Rio Tibre e ateou fogo no Vaticano. [...] o Papa deveria doar o Vaticano à Unesco, como Patrimônio Cultural da Humanidade, e passar a residir em lugar mais condizente com a sua condição de sucessor de um pescador da Galileia”. Frei Betto perguntou se no fim do processo de colegialização,apareceria “uma Igreja sem Pontífice” (“O Globo”, 10-3-13).
No 100º dia de seu pontificado, justificando-se com “uma imprecisa ‘incumbência urgente e improrrogável’”, Francisco I deixou vazio o troneto a ele reservado numa sala repleta para assistir a um concerto pelo Ano da Fé. “Não sou um príncipe renascentista que escuta música em vez de trabalhar”, teria dito. E o Cardeal Pell, arcebispo de Sidney — um do dos oito convidados a reformar o governo da Igreja — sublinhou: “O Papa não quer que o Vaticano seja visto como uma corte da Renascença ou como uma corte do século XVIII” (“Vatican Insider”, 27-6-13). Também Francisco I decidiu não mais nomear Gentis-homens de Sua Santidade, função honrosa outorgada a leigos (“Corriere della Sera”, 23-6-13). A concessão de títulos honoríficos de Monsenhor também ficou adiada sine die.
“Mundanismo” e dessacralização
Francisco I qualificou de “homem sábio” o ex-guerrilheiro tupamaro e atual presidente ateu do Uruguai, José Mujica, a quem recebeu no Palácio Apostólico (“O Globo”, 2-6-13). “O “homem sábio” já aprovou o aborto, o “casamento” homossexual e o cultivo, a posse e o consumo da maconha. Famosos esportistas e figuras dojet-set foram acolhidas com assiduidade, sendo que um jogador de futebol chegou a sentar-se no troneto do Papa durante uma audiência, em meio aos risos dos presentes. O Pontífice ostentou sua “torcida” por um time de futebol da Argentina e até brincou com os adversários derrotados. Deteve-se para conversar com um grupo de fãs de motos Harley-Davidson, reunidos em Roma (“O Globo”, 17-6-13). Guiou um carro velho pelas ruas do Vaticano, recebeu o prefeito de Roma, que chegou de bicicleta, incluiu entre os veículos oficiais uma
bicicleta alemã e colocou um nariz de palhaço na Praça de São Pedro (The Mail online, 6-11-13). O Pontífice multiplicou telefonemas cujo conteúdo foi muitas vezes revelado de modo impreciso, dando azo a controvertidos comentários. Oportunistas ou exibicionistas “confidenciaram” à imprensa falsas conversas telefônicas com o Papa, visando o escândalo e a autopromoção (“El País”, 15-9-13). A revista “Vanity Fair”, edição italiana, reservou-lhe sua capa na edição de 10 de julho. Pouco depois era a vez de a revista “Time” fazer o mesmo, com o título “O Papa do povo” (“O Globo”, 19-7-13) e, em dezembro, conferir-lhe o título de “Personalidade do ano” (23-12-13). Essas capas são sintomáticas de uma mídia laicista, “mundana”, escandalosa, anticatólica que aprecia o estilo pessoal do Pontífice.
Seria demasiadamente longo fazer um elenco dos comentários feitos às homilias pronunciadas por Francisco I durante suas missas quase quotidianas no hotel Santa Marta. Falando de improviso, sem texto escrito, delas só se têm versões sujeitas a manipulações semeadoras de confusão. O Pe. Frederico Lombardi SJ, porta-voz vaticano, precisou esclarecer, em diversas ocasiões, as afirmações do Pontífice. Em 19 de junho, por exemplo, Francisco I verberou os “intelectuais sem talento, eticistas sem bondade, portadores de belezas de museu” que “levam o povo de Deus a um beco sem saída”. A “Agência Zenit” ficou sem saber se ele se referia aos prelados da vituperada Cúria Romana ali presentes, aos conservadores, aos progressistas, ou a algum outro grupo (19-6-13).
Viagem ao Brasil
Antes de partir para o Brasil, onde protestos multitudinários contrários ao governo petista realizavam-se nas ruas, o Pe. Lombardi desmentiu que o Papa“considera os protestos do Brasil justos e de acordo com o Evangelho” (ACI, 3-7-13). A viagem (22 a 28 de julho) focalizou a Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro e uma visita ao santuário de Aparecida. Na residência do Sumaré, Francisco I fez questão de se alojar em pé de igualdade com os cardeais de sua comitiva (“O Estado de S. Paulo”, 12-7-13). Também quis embarcar como um passageiro qualquer no aeroporto romano de Fiumicino, rejeitando o protocolo reservado aos Papas, enquanto Chefes de Estado, de embarcar no aeroporto de Ciampino. No Rio, quis usar um carro mediano (“O Estado de S. Paulo”, 13-7-13). A “Rede Globo” — famosa pela difusão de novelas imorais — dispensou excepcional cobertura à visita de Francisco I, tendo alguns de seus mais controvertidos coreógrafos montado os cenários das cerimônias religiosas.
A acolhida da população carioca, emocionada pelo fato da presença de um Papa na Cidade Maravilhosa, foi reveladora de filial acolhida dos brasileiros e de incontáveis jovens estrangeiros presentes na cidade para a JMJ. A recepção oficial, no entanto, foi decepcionante: “a presidente [Dilma]de expressão arrogante”,segundo a jornalista Eliane Cantanhede, fez um discurso de acolhida que “recorreu a todos os chavões lulistas” e nos quais “pulularam autoelogios à era petista, além de chavões de palanque” (“Folha de S. Paulo”, 23-7-13). Mas o público ignorou as palavras de Dilma, que enfatizaram: “uma aliança de solidariedade”, como também ações de erradicação da fome e da miséria, preocupação com “as desigualdades sociais agravadas pela crise financeira” e com a “globalização da indiferença” (“O Estado de S. Paulo”, 23-7-13).
No treino prévio da missa de despedida e na própria cerimônia, o mundo assistiu pasmo a um flash-mob em que centenas de bispos e arcebispos balançavam o corpo ao ritmo da música.
Entrevista no avião
No Brasil, um projeto para ampliar o aborto aguardava sanção presidencial. Os brasileiros defensores da família esperaram — infelizmente, em vão — uma palavra do Pontífice. No avião de retorno a Roma, Francisco I improvisou uma histórica entrevista de imprensa, na qual pronunciou a frase “Se uma pessoa é homossexual e busca a Deus, quem sou eu para julgá-la?” (“BBC Brasil”, 29-7-13). Essa expressão foi distorcida e apresentada como: “quem sou eu para julgar os homossexuais?”. A deturpação, nunca suficientemente desmentida, virou ariete para a aprovação do “casamento” homossexual e leis “anti-homofóbicas” pelo mundo afora.
Assim, promotores da agenda LGBT passaram a exibir cartazes com essa frase em passeatas e manifestações. No estado de Illinois, EUA, onde o projeto de “casamento” homossexual não passava por causa da oposição dos deputados católicos, tal frase deformada do Pontífice teve o condão de fazê-los mudar de opinião e aprovar o projeto anticristão (“The Chicago Tribune”, 6-11-13). D. Thomas Paprocki, bispo de Springfield, capital daquele estado, julgou necessário fazer um exorcismo coletivo na catedral, na mesma hora em que o governador católico de Illinois assinava dita lei. O bispo afirmou que essa lei introduzia o demônio na sociedade e na igreja diocesana. O prelado apoiou-se numa carta que o então cardeal Bergoglio escrevera a umas religiosas sobre análogo projeto: “não é uma batalha política, mas um complô de Satanás para ‘confundir e enganar’ os filhos de Deus” (LifeSiteNews, 20-11-13). No Brasil, a apresentação feita pelo relator do projeto de Lei Anti-homofobia (PLC 122), senador Paulo Paim (PT-RS), também parafraseia de modo truncado a frase de Francisco I. Desta maneira, partidários e adversários católicos do pecado que atraiu a cólera de Deus sobre Sodoma e Gomorra se enfrentam por toda parte, sendo invocada a autoridade do próprio Papa! Diante de tal espetáculo, a confusão das línguas por ocasião da Torre de Babel parece estar se repetindo.
Reabilitação da Teologia da Libertação
Em 11 de setembro, Francisco I concelebrou na capela do hotel Santa Marta com o fundador da Teologia da Libertação (TL), o sacerdote peruano Gustavo Gutiérrez, e com o discípulo deste, D. Gerhard Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, (“O Globo”, 16-9-13). Os dois concelebrantes, expoentes da TL, acabavam de publicar uma tradução italiana de um livro que faz a apologia dessa teologia outrora condenada pela Igreja, sendo um dos coautores D. Müller, paradoxalmente hoje em dia o presidente da mesma Congregação que antes condenou a TL.
Artigos e trabalhos teológicos sustentam que o Pontífice nunca aderiu à vertente da Teologia da Libertação que adota critérios de análise marxista no estilo do Pe. Gutiérrez, mas sim outra vertente paralela — a Teologia do povo — desenvolvida pelo teólogo argentino Juan Carlos Scannone (www.Chiesa, 5-9-13). O certo é que o fundador da Teologia da Libertação “marxista” nunca se retratou dos erros condenados e o público católico ficou sem saber no quê essas duas vertentes de uma Teologia geralmente considerada como subversiva se diferenciam. Em sermões e discursos, Francisco I incluiu insistentes farpas contra distorções do capitalismo privado, como o consumismo exagerado e a tirania dos mercados. Entrementes, não fez uma correspondente crítica do socialismo e do comunismo, intrinsecamente maus em todas as suas formas.
Muitos católicos passaram a sentir-se “órfãos” nesse novo ambiente. Tal orfandade se transformou em drama aberto quando o cardeal João Braz de Avis, prefeito da Congregação para a Vida Consagrada, nomeouoPe. Fidenzio Volpi chefe do comissariado para intervir no Instituto dos Franciscanos da Imaculada, congregação que se distingue pela prática da pobreza e da austeridade franciscana. O interventor depôs o fundador dessa florescente congregação, nomeando para preposto geral o chefe da dissidência que forneceu argumentos para a criação do comissariado. Assim, estamos diante do paradoxo de franciscanos que levam a sério a pobreza serem punidos pela congregação vaticana aprovada pelo Santo Padre que prega a “opção pelos “pobres” (Vatican Insider, 6 e 8-8-13).
Entrevistas acrescentam novas confusões
No sexto mês do pontificado, a revista dos jesuítas italianos “La Civiltà Cattolica”, publicou entrevista com Francisco I. Diversas afirmações do Pontífice causaram estranheza. Entre elas, a de que a Igreja Católica não pode se “obcecar” pela luta contra o aborto, a contracepção e o “casamento” homossexual. A polêmica com a “cultura da morte” teria ficado para trás, sendo substituída pelo “diálogo”. A resistência às leis imorais conviria ser relegada a um segundo plano, devendo-se dar preferência ao atendimento “misericordioso” quanto aos afetados por esses vícios morais. Inúmeros fervorosos defensores da família sentiram-se desautorados. A entrevista soou como uma abertura pastoral de preferência aos que praticam o aborto, aos divorciados “recasados” ou aos que vivem em união homossexual (“O Globo” e “Folha de S. Paulo”, 20-9-13). Logo depois, Francisco I pareceu sentir necessidade de compensar o desequilíbrio, condenando o aborto numa audiência coletiva a médicos (“O Estado de S. Paulo”, 20-9-13).
Mais conturbada foi sua entrevista a Eugenio Scalfari, diretor do jornal esquerdista “La Repubblica”. Nela, erros morais crassos postos na boca de Francisco I pareceram “mais consoantes com o pensamento laicista dominante que com a doutrina católica” (www.chiesa, 22-11-13). “Sequer os protestantes mais devotos teriam ido tão longe”, escreveu o jornal “Libero” (16-11-13). O texto, publicado com a anuência do Pontífice, foi considerado “fiel ao pensamento” do Papa e “fidedigno em seu sentido geral” pelo porta-voz do Vaticano, Pe. Federico Lombardi. Porém, poucos dias depois, “L’Osservatore Romano” retirou de seu site a entrevista do ar. Por seu lado, Eugenio Scalfari declarou, na Sala da Imprensa estrangeira em Roma, que advertira verbalmente e por escrito ao Pontífice de que havia posto em sua boca frases que ele não pronunciara, e que ainda assim recebeu duas vezes um “OK” (Rossoporpora.org, 21-11-13). Nesse imbróglio ficou difícil saber o que Francisco I afirmou, mas foram difundidas pela mídia frases contrárias à doutrina católica que não foram refutadas à altura. Um acatado siteitaliano, admirador do Pontífice, reconheceu ser impossível discernir qual é a sua linha intelectual. Segundo “La Nuova Bussola Quotidiana” (22-11-13), Francisco I pode ser tido como “progressista” e “hiper-conservador” ao mesmo tempo. Como fica nisso o princípio de não-contradição, segundo o qual uma coisa não pode ser e ser ao mesmo tempo?
Episcopado alemão na rota de colisão
Na entrevista que concedeu durante o voo de retorno do Rio, Francisco I, diz-se, teria entreaberto uma porta para os divorciados “recasados” receberem a Comunhão. Em 23 de outubro, o presidente da Congregação para a Doutrina da Fé, D. Gerhard Müller, “corrigia a piscada do Papa aos divorciados”, no dizer do diário espanhol “El País” (23-10-13). D. Müller lembrou que essa hipótese é intrinsecamente inadmissível e, portanto, “é impossível [aos ‘recasados’]receberem os Sacramentos”. Porém, em 7 de novembro, o arcebispo de Munique, Cardeal Reinhard Marx, membro do grupo de oito cardeais escolhidos para estabelecer a nova constituição da Igreja, contestou D. Müller dizendo que o “prefeito da Congregação não pode fechar o debate” (“La Vie”, 13-11-13). No mesmo mês, D. Gebhard Fuerst, arcebispo de Stuttgart, confirmou que os bispos alemães já fixaram critérios para distribuir a Comunhão aos “recasados”. Robert Eberle, porta-voz da arquidiocese de Freiburg, após a divulgação da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, reafirmou a posição condenada dizendo que “o Papa agora apontou claramente que certas decisões podem ser tomadas localmente”. Uwe Renz, porta-voz da diocese de Rottenburg-Stuttgart, declarou que os bispos alemães estavam agindo “no espírito do ensinamento do Papa” (“Catholic Herald”, 28-11-13). Por sua vez, D. Lorenzo Baldisseri, secretário-geral do Sínodo dos Bispos, explicou que “a experiência da igreja ortodoxa [igrejas cismáticas que admitem o divórcio] poderá ser de ajuda” (Vatican insider, 29-11-13).
“Agitação que não se vê há séculos”
Em outubro, o Vaticano enviou uma consulta com 38 quesitos destinados às Conferências Episcopais sobre temas como sacramentos para os “recasados”, uso de anticoncepcionais, e a família em geral. Esta consulta é de praxe antes dos Sínodos universais, mas nunca foi estendida aos fiéis. Porém, o documento assinado pelo secretário-geral do Sínodo dos Bispos pedia que ela fosse respondida da forma “mais ampla possível”. Entenderam muitos que também os fiéis deviam responder (“O Globo”, 2-11-13). Resultado: no episcopado americano, por exemplo, estabeleceu-se a falta de consenso. A extensão da consulta pareceu“difícil de decifrar” (“National Catholic Reporter”, 5-11-13). Nos EUA ela só foi enviada aos bispos, mas alguns destes a colocaram online; representantes LGBT reclamam o ‘direito’ de enviar suas respostas. Também na Inglaterra ela foi postaonline. Na França e alhures, grupos de base “progressistas” igualmente exigiram ser consultados. O Pe. Lombardi tentou arrefecer as tensões, tendo a “Folha de S. Paulo” (5-11-13) observado que a perspectiva de respostas previsivelmente revolucionárias por parte de grupos progressistas “significa que o papa está lançando a igreja em uma agitação como não se vê há séculos”.
Evangelii Gaudium
Em 24 de novembro, na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, Francisco I sistematizou as linhas de seu pontificado. O documento enfatiza a “descentralização” e sinodalização da Igreja, com a transferência de poderes inclusive doutrinários às Conferencias Episcopais; o abrandamento dos preceitos e normas da Igreja considerados “antiquados”, excessivamente numerosos e pesados; inclusão de mulheres em cargos de governo “onde se tomam decisões importantes”; extensas invectivas contra excessos na economia de mercado, que muitos identificaram com uma condenação do capitalismo privado (“El País”, 26-11-13).
D. Lorenzo Baldisseri apresentou o documento como sendo baseado numa versão “correta” da Teologia da Libertação, visando combater as desigualdades sociais e a pobreza (“O Estado de S. Paulo”, 27-11-13). Por sua vez, a revista anarco-socialista francesa “Rue89” publicou sua análise sob o título “Desta vez é certo: o papa Francisco é socialista”. Ela julga que não se pode ainda dizer que o Pontífice é marxista, embora certos pensamentos dele levem a se pensar assim. Mas, “a partir da Exortação Apostólica, pode-se afirmar sem temor que o Papa Francisco é ferozmente antiliberal e até... socialista”. Após avaliar o documento, a revista conclui que a Exortação encerra uma gradual e radical evolução na Igreja “do anticomunismo para o anticapitalismo” (27-11-13). Em dezembro, a “Folha de S. Paulo” (11-12-13) resumia as repercussões de Exortação Apostólica sob o título“Papa vira vilão nos EUA após críticas ao capitalismo”.
“Guerra civil católica”?
Diante de tantas imprecisões, contradições, interpretações e contra-interpretações, mentiras e desmentidos, muitos deploraram a instalação de um“entrechoque, primeiro larvado e cada vez mais aberto, áspero e até dramático entre os católicos que sinceramente amam e servem a Igreja tradicional, o Vigário de Cristo na Terra e se esforçam para respeitar, difundir e propagar o Depositum Fidei. [...] Trata-se de uma espécie de ‘guerra civil católica’” (“Riscossa Cristiana”, 2-11-13). O arcebispo de Philadelphia (EUA), D. Charles Chaput, reconheceu que os fiéis de sua arquidiocese estão “confundidos pelas palavras do Papa Francisco”. D. Chaput explicou que, após a entrevista à “Civiltà Cattolica”, recebeu “e-mails de catequistas, pais e fiéis de prática quotidiana que se sentem confundidos pelos títulos da mídia sugerindo que a Igreja mudou seu ensinamento pelo menos em alguma medida” (“Philly.com”, 25-9-13).
Confusão das línguas na América Latina
Se a confusão das línguas atingiu tais níveis na Igreja Católica, Mestra infalível da Verdade, ponto de referência obrigatório das verdades absolutas indispensáveis para racionalidade dos homens, o que dizer do desvario que foi tomando conta da ordem temporal? No início do ano, o histriônico ditador socialista Hugo Chávez estava vivo ou morto? Segundo Nicolás Maduro, ele voltaria de Cuba para reassumir a presidência. Chávez regressou com suas próprias forças, como disse a versão oficial, ou num caixão, como afirmou a oposição? O corpo conduzido durante oito horas sob o sol de Caracas era o dele ou não? Ninguém pôde fotografá-lo, nem mesmo a imprensa oficial. Dizem que o caixão que saiu do Hospital Militar de Caracas não teria sido o mesmo que chegou ao local do velório.
Uma farsa não muito distinta da que envolveu o corpo do ditador presidiu a posse de seu sucessor, Nicolás Maduro, sobre cujo chapéu o espírito de Chávez, simbolizado por um passarinho de plástico, continuaria sendo sua fonte de inspiração! No final do ano, Maduro incitava invasões a lojas e supermercados e incentivava a luta de classes. A desorganização social, política e econômica da Venezuela atingiu o paroxismo: confiscos, controles da moeda, falta de alimentos e produtos de higiene básicos, prisão de centenas de empresários e comerciantes, repressão, supressão das liberdades, inadimplência internacional.
Pouco menos caotizante foi a posição assumida pelo governo argentino. Após míticas disputas com o cardeal-arcebispo de Buenos Aires, uma vez eleito Papa o kirchnerismo apoiou-se nele, recebendo do antigo opositor sinais de estima em meio às dificuldades. Cristina Kirchner obteve uma foto de Francisco I ao lado do líder da chapa oficialista para as eleições de agosto. Apesar disso, e da referida foto ter coberto os muros de Buenos Aires, o kirchnerismo sofreu pesada derrota. Em novembro, pouco depois de padecer problemas cerebrais, a desprestigiada presidente nomeou um novo chefe de gabinete. Este substituiu os símboloskirchneristas de seu escritório por fotos de santos, da família e de Francisco I. Cristina Kirchner nomeou um sacerdote para chefiar a luta contra a droga, ao mesmo tempo que ex-ministros e novos ministros tidos como cripto-comunistas passaram a se declarar católicos de longa data e admiradores de Francisco I. As arbitrariedades, os desrespeitos a direitos adquiridos — voltados sistematicamente contra os “ricos”, o “capitalismo” e a “oligarquia tradicional” —, os controles estatais da moeda e das despesas dos cidadãos, a perseguição à imprensa oposicionista e o desrespeito do Judiciário se tornaram moeda corrente. Em dezembro, uma enorme onda de greves policiais, saques e violências semeou mortes e entrechoques armados, parecendo imitar a decomposição social da Venezuela.
Brasil na confusão
O Brasil veio pouco atrás nessa cavalgata rumo ao desvario. No início do ano, muitos duvidavam que o processo do Mensalão concluísse com punições. Entretanto, em agosto, o STF condenou 25 réus, incluindo o chefe da quadrilha, e em setembro determinou novo julgamento para parte dos delitos cometidos por 12 réus. Estes se entregaram à polícia, sendo encarcerados alguns em regime fechado e outros em regime semi-aberto. O chefe da quadrilha, José Dirceu, anunciou que durante a reclusão trabalharia como gerente de hotel, possibilidade que lhe foi negada pelo STF. Logo após a expedição dos mandados de prisão, o ex-presidente Lula telefonou aos principais mensaleiros afirmando: “estamos juntos”(“Zero Hora”, 16-11-13).
O mal-estar reinante na opinião pública nacional especialmente com o rumo adotado pelas esquerdas para o País se exprimiu em manifestações a partir de 11 de junho. Passeatas, cânticos, slogans, cartazes, encheram as ruas de numerosas cidades em todo o território nacional. Em 15 de junho, no Estádio Nacional de Brasília, a presidente Dilma Rousseff foi vaiada três vezes pelo público. “A novidade da mobilização popular é a visão conservadora despertada”, avaliou o Prof. Wolfgang Leo Maar, da Universidade Federal de São Carlos. Porém, nos protestos se misturaram grupos anarquistas, gerados no Fórum Social de Porto Alegre com apoio do PT e da esquerda internacional. Estes grupos praticaram violências que afastaram a população ordeira das manifestações.
Na política exterior, a presidente Dilma liderou protestos internacionais contra a espionagem feita pelo governo Obama. Os protestos antiamericanos foram dramáticos, patenteando-se depois que os países denunciantes se espionavam reciprocamente. “Qual país desenvolvido que não utiliza este recurso ‘ilegal’? É uma hipocrisia imaginar que isto não acontece”, escreveu o coronel da reserva Paulo Rinaldo Fonseca Franco que trabalhou para a Abin (“O Globo”, 12-7-13). A presidente Dilma tentou explicar sua atitude contraditória afirmando que a espionagem brasileira “foi totalmente diferente” (“O Estado de S. Paulo”, 6-11-13).
Estados Unidos em meio a um tufão
Os EUA começaram o ano com um pesadelo: as despesas governamentais estavam bloqueadas e a maior economia da Terra podia cair na inadimplência, com efeitos mundiais catastróficos. A ruína foi evitada em janeiro, quando a Câmara de Representantes aprovou um aumento do teto da dívida pública. Porém, a crise voltou a se repetir com um novo adiamento in extremis até 7 de fevereiro de 2014. Para esse desequilíbrio pesou o faraônico gasto com o sistema socialista de saúde implantado por Obama. Além de socialista, estatizante e impopular, o Obamacare— como é chamado — promove medidas ferozmente anticatólicas, pois obriga as instituições da Igreja a praticar abortos, entregar crianças a casais homossexuais, sem direito à objeção de consciência.
Em 21 de janeiro, ao inaugurar seu segundo mandato, Obama prometeu o fim de “uma década de guerras” (“O Estado de S. Paulo”, 22-1-13). Em 21 de agosto, a despeito da declaração de Obama feita um ano atrás, de que utilizar bombas químicas equivaleria a transpor uma “linha vermelha”, o governo sírio lançou-as contra a população adversária. Os governantes sírios se beneficiaram do apoio da Rússia e da “neutralidade” da China. Aviltando o prestígio internacional dos EUA, Obama se desdisse e cedeu diante da posição assumida por Vladimir Putin: um desarmamento do arsenal químico sírio sob a supervisão internacional. Putin foi ovacionado como salvador da paz e chegou a escrever artigo no “New York Times” tachando os EUA de irresponsáveis. Em novembro, o presidente norte-americano assinava um acordo com o Irã, que foi comparado à capitulação das potências ocidentais diante de Hitler em Munique. Em seguida, a China explorou a atitude inconsequente de Obama declarando-se unilateralmente detentora de uma “zona de defesa aérea” exclusiva sobre um arquipélago controlado pelo Japão. O fantasma de uma guerra nuclear apresentou-se quando aeronaves de guerra dos dois países, da Coreia do Sul e dos EUA sobrevoaram a área disputada.
Labirinto da crise europeia
O presidente socialista francês François Hollande vem aplicando seu programa pelo método de rolo compressor. O “casamento” homossexual foi aprovado no Parlamento, tendo a população reagido com manifestações envolvendo milhões de pessoas. A França transformou-se num vulcão com inúmeras bocas abertas. Veilleurs — como lá são conhecidos os que protestam de modo pacífico — fazem vigílias em locais famosos, os ministros recebem vaias monumentais onde quer que apareçam. A economia entrou em forte declive e a elite econômica, atingida por impostos equivalentes a 75% de sua renda, começou a fugir do país. O governo multiplicou planos sociais e empregos públicos para maquiar o desemprego. Por ocasião do fim do ano, a maioria da população revoltou-se contra o totalitarismo tributário simbolizado pela “ecotaxa” — imposto abusivo a que foram submetidos os caminhões pela emissão de CO2.
Na Inglaterra, o primeiro-ministro David Cameron prometeu um referendo que poderá libertar o país da União Europeia em 2017. Também fixou para 2014 outro referendo sobre a separação da Escócia do Reino Unido. O voto escocês é incerto, mas é incontestável que os britânicos rejeitam tanto a UE quanto o euro. Outro pânico se avolumou entre os políticos do Velho Mundo: a perspectiva de um auge de votação anti-UE nas eleições para o Parlamento Europeu. O Episcopado francês ameaçou engajar-se contra esse voto, qualificado de “extrema direita”. Na Catalunha, as tendências separatistas estão pleiteando a realização de um referendo a favor da independência, enquanto a família real espanhola, polo unificador da Espanha, vem se desprestigiando em razão de escândalos financeiros noticiados com viés antimonárquico. A Alemanha continuou sua posição de defesa da EU, contrária à seu desmantelamento.
Ascensão de Putin
Enquanto o Ocidente vai se desfazendo na contradição, foi se projetando no mundo a luz negra de Vladimir Putin. O antigo coronel da KGB operou uma cirurgia estética no rosto da Rússia: embora procurando restaurar o poderio soviético, astutamente se apresentou como paladino da civilização cristã. O patriarca da ‘igreja ortodoxa’ de Moscou, Kyril — também ex-agente da KGB — foi eficaz instrumento para isso. Hierarcas dessa igreja increparam de modo concertado os governos laicistas ocidentais e apresentaram a Rússia de Putin como modelo de restauração do cristianismo. O presidente russo foi saudado como o grande vencedor da crise da Síria e se empenhou em ganhar a admiração dos movimentos europeus contrários ao socialismo e à Revolução Cultural. Seu mais sutil lance consistiu em sua visita a Francisco I no Vaticano. Entre os gestos diplomáticos simbólicos destacou-se o “olhar cúmplice no Vaticano”, segundo “O Globo” (26-11-13), trocado com o Pontífice, o qual havia verberado severamente o sistema econômico-social do Ocidente, também criticado pelo líder russo. Mas, pelo fim do ano, a corajosa reação ucraniana às manobras imperialistas de Putin ameaçou arrancar a máscara pseudo-conservadora do antigo oficial da KGB.
No Extremo-Oriente, a estrela da China — aliada discreta, mas fiel de Putin — foi declinando. Fraquezas estruturais de sua artificial economia se revelaram ao longo do ano. Mais de cem mil motins populares patentearam a inconformidade do povo chinês em relação ao regime comunista. O novo chefe supremo, Xi, radicalizou a repressão e a “remaoização” do aparato ideológico e policialesco do regime, ao mesmo tempo que prometia reformas legais cosméticas.
Largos setores reagem à caotização
Largos setores da opinião pública foram se descolando das lideranças religiosas e temporais que irradiavam a “confusão das línguas” e das mentes. A recusa da desordem devoradora gerou uma crescente procura da ordem verdadeira. Além dos milhões de franceses que saíram às ruas em oposição à agenda socialista contrária à família, à propriedade privada e à liberdade, multitudinárias marchas contra o aborto ocorreram na Europa e nos EUA. Em janeiro, a revista “Time” constatou que nos últimos 40 anos a causa do aborto nos EUA vem perdendo em todos os campos (Infocatólica, 4-01-13). O Estado do Texas aprovou a lei mais restritiva ao aborto dos EUA. Em muitos outros estados americanos essas clínicas cessaram de existir. A Croácia foi outro exemplo (vide seção “SOS Família”). Se a agenda da “cultura da morte” avançou foi devido a arranjos políticos, a juízes e até a eclesiásticos, contrariando a vontade popular de modo geral.
Os “profetas da Igreja do futuro”, que atuaram intensamente no período pós-conciliar, envelheceram, perderam o dinamismo ou faleceram. Seus principais órgãos de expressão enfraqueceram ou desapareceram. Há até quem fale emGeriatria da Libertação...Em 2013, constatou-se o deperecimento dos ‘ideais’ de Maio de 68 e até da Filosofia das Luzes da Revolução Francesa. As vaias ao presidente socialista francês ao longo da Avenida Champs-Elysées, por ocasião das festas de 14 de julho e 11 de novembro, não só testemunharam a decadência da agenda socialista, mas o fim de uma era revolucionária. Eric Zemmour, radialista mais ouvido da França, falou de “uma espécie de guerra civil larvada” de natureza cultural que dá violentos estalos. Uma imensa mudança de paradigma está em curso, acrescentou o “Boulevard Voltaire” (18-11-13).
Fenômeno geracional esperançoso
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Enquanto os movimentos progressistas e socialistas se arrastavam para atender a “última chamada” que significou o novo pontificado, ruas e templos foram sendo invadidos por jovens que parecem em busca de uma situação como a existente antes do Vaticano II e de Maio de 68. Os seminários e conventos “modernos” entraram em via de extinção. Mas os tradicionais, moldados no estilo “constantiniano”, encheram-se, por vezes até ficarem lotados. “The Economist” constatou que a “modernização” do catolicismo na Grã-Bretanha fez os fiéis desertarem das igrejas, aliás com clero cada vez mais escasso. Mas as Missas em latim, voltadas para Deus e de costas para o povo, aumentaram em mais de 600% em cinco anos, com uma frequentação que é o dobro das Missas “novas”. No Brasil, desde o século XVIII nunca a Ordem das Carmelitas Descalças de estrita clausura, teve tantas freiras como neste início do século XXI: cerca de mil monjas. Há dez anos eram 700, constatou a “Folha de S. Paulo” (23-12-12). As clarissas, outra das mais austeras ordens de clausura, contam cerca de 300 monjas em 30 mosteiros. Em 1955, só eram 59 religiosas em três casas. E as ordens religiosas modernizadas contam nos dedos seus últimos membros, enquanto vão se encerrando conventos e instalações. Mons. Yves Patenôtre, arcebispo de Sans-Auxerre (França) confidenciou que, em duas décadas de sua atividade como bispo, ordenou um padre, mas enterrou 120 (“Perepiscopus”, 19-11-13).
Na Califórnia foi inaugurado o mosteiro medieval de Santa Maria de Óvila, que há um século um milhardário norte-americano trouxera desmontado da Espanha, mas que nunca conseguira remonta-lo. Monges cistercienses novos realizaram o prodígio. “O que parecia morto, ou quase morto, se ergue de novo”, disse o abade Paul Mark Schwan (“Folha de S. Paulo”, 14-1-13).
2014?
2013 encerrou-se com os homens quase não se entendendo mais. O que nos trará 2014? Análoga pergunta fizemos no fim do ano passado refletindo sobre o caos da Babel ecumênico-globalizada. Vimos também sinais de que a Providência vai reunindo almas para o grande triunfo anunciado por Nossa Senhora em Fátima.
Mais eloquente do que a balbúrdia produzida pelos homens foi um grande silêncio sobre o qual ninguém fala — o silêncio de Deus. É como se Ele tivesse querido se afastar desse estado de coisas. A humanidade ainda se aperta em torno da Babel, da qual se desprendem pedaços cá, lá e acolá. Um pintor imaginou os últimos desesperados construtores da Torre de Babel açoitando as mulas de carga para subir ao alto do prédio da maldição, enquanto outros lhes jogam pedras para dissuadi-los. Uma mesma palavra dos arquitetos de Babel significa uma coisa e o contrário dela; e os homens enlouquecem tentando decifrar seu significado. É o resultado de ter proclamado que o Bem e o mal, a Verdade e a mentira, o Belo e o feio são a mesma coisa e que qualquer um pode escolher livremente um ou outro.
Algo, entretanto, parece se mover numa esfera que não é a dos pobres humanos. Sopros fétidos e quentes vindos do reino das trevas explodiram em incontáveis e atrozes blasfêmias durante 2013. Brisas sutis de espíritos angélicos reanimaram e rejuvenesceram fileiras do catolicismo autêntico. É de se supor que essas ventanias cresçam no ano que começa. Dará isso numa dispersão final, fruto necessário da “confusão das línguas”? Ou veremos dois movimentos opostos, um bafejado pelo inferno rumo às trevas do desvario final, e outro soprado por anjos que aglutinam os filhos da luz e os organiza em ordem de batalha aos pés da Santíssima Virgem para “novos e cristãos atrevimentos”?
E-mail para o autor: catolicismo@terra.com.br
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